Carta aberta aos meios de comunicação social sobre o estado do Estado digital
Carta aberta aos meios de comunicação social que leio habitualmente (sem desprimor para todos os outros)
Envio em anexo o documento Dissecação de um processo de criação de empresa online no portal ePortugal em Abril/Maio de 2021. Nele evidencio, com exemplos vários, os problemas persistentes da Administração Pública Electrónica em Portugal.
Conteúdo
O poder do quarto poder na guerra das palavras
Um Gattopardo abanca no Terreiro do Paço a comentar as notícias ou Uma Chave para Descortinar a Cortina
Herbert Bayard Swope, considerado o pai do “Op-Ed”, afirmava que «nothing is more interesting than opinion when opinion is interesting». Claro que esta visão benigna seria, de certo modo, contrariada pelo próprio Swope ao acrescentar que “thereupon I decided to print opinions, ignoring facts”.
Os media portugueses ainda parecem muito reféns de uma perspectiva em que se considera que nada é mais interessante do que a opinião de alguém conhecido da opinião pública. Isto conduz a uma dissonância entre a opinião emitida, muito assente em realidades experimentadas por quem pertence, ou tem proximidade, a círculos com mais poder na sociedade portuguesa, e a realidade vivenciada pelo cidadão comum.
Como o país é tão pequeno, é mais notório o desmesurado relevo dos políticos-analistas-comentadores-formadores-de-opinião (maioritariamente homens) no espaço mediático português, que julgo não ter paralelo em qualquer outra democracia (relativamente) avançada. Independentemente do brilhantismo de alguns intervenientes, isto conduz forçosamente a um afunilamento e empobrecimento do debate público.[1]
Presumo que a maioria dos políticos-analistas-comentadores-formadores-de-opinião não tenham de interagir com a administração pública (electrónica ou analógica) do mesmo modo que o fazem os comuns mortais. De outro modo, seria impensável não existir um maior clamor público para reformar de facto, em vez de discutir pela enésima vez a reforma renomeada no Diário da República com a nomeação de um novo Governo.
Presumo que nenhum político-analista-comentador-formador-de-opinião tenha constituído uma empresa através do serviço de criação de Empresa Online. Isso ajuda a explicar a invisibilidade deste tipo de problemas “comezinhos” no espaço mediático. Isso ajuda a explicar porque tanto permaneça igual, mesmo quando tudo pareça estar a mudar.
Excurso alegórico oficial e oficioso:
Apesar de não estar na Lei nº 8/97, de 31 de Maio, do Estatuto Especial do Município de Maputo, os chefes dos quarteirões desta cidade sabem que têm de manter limpas as “ruas protocolares”. Estas são as ruas por onde circulam habitualmente as mais altas figuras do Estado.
Também Timor Leste dá tanta importância a estas ruas que até inscreveu no “Plano Anual do Ministério da Administração Estatal para 2015”, na sub-meta “Gestão e garantia de higiene e limpeza dos espaços públicos”, da rúbrica “Eficiência e eficácia na Administração Pública para prestar o atendimento satisfatório ao Ministério e ao público”, o seguinte “Produto e Serviço”: “Limpar as ruas protocolares”.
Quem transita por ruas protocolares vê tudo resplandecente, oficialmente livre de caniço e latas dos bairros periféricos. É assim possível morar num país tropical abensonhado por Deus.
O poder do quarto poder na guerra das palavras
Seria soberba minha supor que a partilha desta experiência fosse mudar alguma coisa no tratamento mediático das “reformas”. Os media portugueses estão demasiado arreigados a um tratamento teórico-legalista das propostas governativas, feito por políticos-analistas-comentadores-formadores-de-opinião, descurando a opinião dos que por elas serão afectados. Isto foi por demais evidente na discussão do PRR.
Por outro lado, em termos relativos, os media portugueses são até melhores do que os que existem noutros países europeus. A tabloidização, por exemplo, não atingiu, nem de perto, nem de longe, o extremo a que chegou noutras paragens. Esta qualidade dos nossos media está reflectida no honroso 10.º lugar alcançado por Portugal, em termos de liberdade de imprensa, no Índice de Qualidade das Elites (EQx) 2021.
Atendendo a essa qualidade e a essa liberdade, por infinitesimal que possa ser o meu contributo para uma diferente abordagem e para vincar a premência da “consulta pública” permanente das reformas, considero que vale a pena perder tempo a participar esta minha provação.
(Um leitor mais cínico poderia vislumbrar nesta partilha uma validação de uma certa vox populi, que afiança que um tema só se torna relevante para os políticos, se for mediado pelo quarto poder).
Espero que o pequeno “relatório” abaixo possa despertar o interesse de algum jornalista e sirva para o incentivar a dar um tratamento mais crítico e concreto dos lança-granadas, morteiros e bazucas; para que esta exaltação bélica não se transubstancie em pólvora seca.
Paulo Ferreira
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Mantém-se o que Felisbela Lopes e Hália Costa Santos afirmavam em 2011: “O facto de os programas com painéis residentes se centrarem sobretudo na área da política e do desporto faz com que os comentadores que neles têm assento sejam muito pouco representativos dos diferentes grupos sociais.” ↑