Carta aberta à Provedora de Justiça sobre o estado do Estado digital
Carta aberta à Excelentíssima Senhora Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral
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Carta aberta à Excelentíssima Senhora Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral
A cidadania activa é o broken link entre o Estado e o estado disto
E ora faça el-rei quanto poder, e eu servi-l’-ei quando for mester, pero sõo mui [pouco] seu soldado
A indiferença, as teorias da conspiração e “Eu non creo nas meigas, mais habelas, hainas”
P.S.: Algumas notas sobre o site do Provedor de Justiça na internet
A fatalidade do amo e Jacques
Uma das competências de V.ª Ex.ª é a emissão de recomendações aos órgãos competentes com vista à “melhoria da organização e procedimentos administrativos dos respetivos serviços” dos poderes públicos.
Remeto infra um pequeno relato das dificuldades que um cidadão português enfrenta (em Abril/Maio de 2021) para criar uma empresa, através do respectivo serviço online disponibilizado pelo Estado português. A utilização desse serviço levou-me a percorrer os labirintos digitais que constituem actualmente a Administração Pública Electrónica em Portugal.
Julgo, que dos factos apresentados nesse testemunho e nas demais cartas abertas que partilho, se podem deduzir as seguintes críticas:
- Há negligência continuada da qualidade do serviço, como evidenciado, entre outras coisas, pela profusão de hiperligações não operacionais, ou que remetem para sites desactivados;
- Há bastas vezes incúria na informação prestada ao cidadão;
- Há uma patente ausência de coordenação entre os vários serviços públicos na internet;
- Há um persistente escasso interesse pela participação real dos cidadãos na coisa pública.
Bem sei que o cargo de V.ª Ex.ª é totalmente independente e, por isso mesmo, gostaria de declarar também a minha independência. Não considero que a situação ora exposta seja imputável, em particular, à acção do actual governo, mas é um traço político-cultural que tem resistido a todas as tentativas de reforma de todos os governos.
Julgo que estas observações não devem levar a um fatalismo tal que tolha qualquer ensejo de contribuir para a mudança. Entendo até, que a conjugação da ameaça da pandemia e a oportunidade trazida pelo plano de recuperação para a Europa, fazem deste momento o ideal para encetar transformações jamais ousadas neste país. Se não for agora, quando será?
A cidadania activa é o broken link entre o Estado e o estado disto
A transição digital do Estado e das empresas é um dos pontos centrais do Plano de Recuperação e Resiliência. O relato que envio abaixo e as demais cartas abertas focam-se muito na Administração Pública Electrónica. Os factos e as experiências que partilho, deixam bem à vista o modo, muito pouco cuidado e muito pouco atento aos cidadãos, com que a transição digital tem vindo a ser feita. Se nada for feito, o PRR será, aí sim, inevitavelmente, mais do mesmo – mais promessas tonitruantes, mais broken links, mais guias que pouco explicam, mais serviços que não comunicam entre si, etc.
– Não sendo a Administração Pública irreformável;
– Não sendo a cauda da Europa o destino inelutável do país;
– Não sendo a mudança da cultura política passível de ser decretada por lei;
– Não sendo a impassibilidade do Estado perante os cidadãos e as empresas um fado português;
– Não sendo os cidadãos ingénuos quanto ao potencial de corrupção e esbanjamento que os apoios europeus implicam;
Apenas a existência de múltiplas pressões, para que seja indispensável a participação dos cidadãos em todas as fases posteriores do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), poderá parcialmente salvar o país de mais uma oportunidade perdida.
Infelizmente a fase de elaboração do PRR não parece ter dado um papel central à participação cívica, o que não é incomum – é apenas uma corroboração do que exponho nesta e nas outras cartas abertas e no relatório.
Os montantes que vão ser investidos em Portugal exigem um escrutínio muito mais aprofundado, continuado e radicalmente diferente. Julgo que teria de ser imposta a obrigatoriedade de responder decentemente aos cidadãos. Parece um contra-senso utilizar termos tão severos para afirmar o exercício do que deveria ser uma trivialidade. Mas a verdade é que muitas vezes os cidadãos não são ouvidos, não lhes é dada nenhuma resposta, ou quando a têm, ela não é muitas vezes acessível (“decente”).
E ora faça el-rei quanto poder,
e eu servi-l’-ei quando for mester,
pero sõo mui [pouco] seu soldado[1].
Este exercício “coercivo” de abertura democrática apenas será possível se a construção, execução e escrutínio das medidas também for feito de baixo para cima. Permita-me V.ª Ex.ª que partilhe um exemplo específico, para não incorrer na falácia de prometer amanhãs que cantam sem trovar um fado diverso.
Serviço de criação de empresas online (esquisso de uma calendarização de passos antes de gastar um cêntimo em projectos arrojadíssimos):
- O resultado existente é satisfatório? Não, o serviço está mal construído, tem falhas, revela falta de sinergias e expõe problemas em serviços conexos;
- Quem são os destinatários mais frequentes deste serviço? Empreendedores / empresários;
- Foi contactada uma amostra aleatória de utilizadores recentes do serviço para detectar anomalias e recolher sugestões? Não avançar enquanto não for realizado este pequeno (e rápido) estudo;
- Seguir as recomendações disponíveis no sumário do encontro sobre experiência digital, de Outubro de 2019, do United States Web Design System (ou algo similar);
- Reler o artigo do criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee (de 1998): Cool URIs don’t change;
- O serviço foi submetido a uma auditoria para avaliar a experiência do utilizador? Não avançar enquanto não for realizado este pequeno (e rápido) teste;
- Já foram contactados os serviços associados, aos quais o cidadão tenha de recorrer? Solicitar a esses serviços que executem os passos 1 a 6;
- Conceber propostas (simples e breves) de alteração, com base na informação recolhida, e partilhá-las com a amostra de utilizadores e com as associações empresariais;
- Ir construindo o projecto do serviço, em diálogo com os outros serviços e instituições (AT, Banco de Portugal, etc.). O enfoque primordial tem de ser no resultado para o cidadão e não a comodidade ou facilidade para o serviço.
- Averiguar se a legislação existente é compatível com o resultado pretendido para o cidadão. Caso não seja, informar o governo e o parlamento dos obstáculos encontrados. Sugerir alternativas, meramente indicativas, para ultrapassar esses escolhos.
- Adoptar sempre o princípio de que o detentor de mais informação sobre uma matéria específica terá o papel preponderante no desenho do serviço. Mas qualquer seja esse actor, Ministério da Justiça, Autoridade Tributária, Banco de Portugal, não se poderá refugiar na lei para continuar a prestar um mau serviço ao cidadão. Se o resultado alcançável com os actuais procedimentos e a actual lei não for satisfatório, o serviço ou instituição obriga-se a voltar ao ponto 6.
- Os Órgãos do Estado estão obrigados a dar respostas em tempo útil (determinado) aos entraves detectados por esta análise (dialogante);
- Compilar os contributos dos utilizadores, das associações e dos serviços conexos e elaborar uma proposta final;
- Comunicar um sumário da proposta final às várias partes;
- Avaliar se a estrutura dos serviços é a mais adequada para realizar bem o serviço. Comunicar possíveis sugestões às direcções e aos titulares das respectivas pastas.
- O governo obriga-se a dialogar com os serviços e a negocia possíveis ajustes de recursos humanos e em termos de organização;
- Muito importante: não alterar o URL de um serviço a não ser que seja absolutamente imprescindível. (Deveriam ser estabelecidos um conjunto de serviços e instituições, que pela sua indispensabilidade deveriam permanecer inalterados. O Ministério da Justiça até poderá ter mais alguma valência, a Reforma Administrativa, por exemplo, mas deveria continuar a ser justiça.gov.pt [sim, “ç”], independentemente do governo em funções).
- Inserir no juramento solene de tomada de posse de Primeiros-Ministros, Ministros e Secretários de Estado: “Juro por minha honra tudo fazer para não cair na tentação de redenominar serviços e instituições centrais da República Portuguesa”;
- Muito importante: não criar nova legislação a não ser que seja inevitável (estabelecer tectos indicativos);
- Avaliar num prazo curto se há alguma correcção a introduzir;
- Pôr em funcionamento o serviço de criação de empresas online;
- Inserir em cada página dois locais de interacção com o utilizador em que se questione se a informação prestada foi útil e se encontrou alguma incorrecção da informação prestada;
- Instalar ferramentas de monitorização de broken links;
- Rever periodicamente a informação prestada e ter sistemas automáticos de detecção de alterações legislativas relevantes;
- Ante a dúvida fundamentada de um cidadão ou a dúvida repetida de vários utilizadores, tem de se criar mais informação explícita, ou, em última análise, melhorar a área afectada;
- Atribuir a monitorização e manutenção do serviço a alguém. Responsabilizar.
- Voltar ao ponto 3.
Se isto parecer demasiado ingénuo e pueril é porque nunca existiu em Portugal. Todavia, há países em que, por terem a primazia do cidadão instituída na sua cultura democrática, tais procedimentos não causam nenhuma estranheza.
Este exemplo tem de deixar de ser utópico. Permita-me que solicite a V.ª Ex.ª que faça uso das suas competências para recomendar vivamente uma abordagem em que os resultados e a participação cívica se tornem indissociáveis de qualquer medida do PRR. O objectivo é que a participação cívica esteja de tal modo imbricada nas medidas, que qualquer tentativa de a constranger revelará os telhados de vidro de quem o intenta. A integração obrigatória dos destinatários das políticas na execução das medidas, torná-las-á mais focadas nos resultados e será um meio de melhorar a organização e os procedimentos administrativos dos serviços públicos.
Não se pretende com isto retirar qualquer margem de manobra à governação. Enquanto órgão superior da Administração Pública democraticamente eleito, o governo tem o direito de fazer a gestão da coisa pública de acordo com o seu programa. Mas sendo o país como é e vindo aí uma bazuca vitaminada, os cidadãos terão de ter um papel central e o seu julgamento não poderá ficar relegado apenas para o dia das eleições. Circunstâncias excepcionais exigem medidas extraordinárias. A “bazuca” não pode ser sinónimo, de novo, de “milhões da Europa roubados com autorização do Estado” (título de um artigo da revista Sábado). A vitamina não pode dar nisto:
A indiferença, as teorias da conspiração e “Eu non creo nas meigas, mais habelas, hainas”
Aconselharam-me a não escrever nada sobre este assunto. A indiferença pelos cidadãos que o estado do Estado digital patenteia, seria um sinal de que ninguém “ligaria patavina” para a minha crítica, por mais construtiva que ela fosse. Por outro lado, os riscos de revanchismo, ou de retaliação por via de contra-ordenações mil-novecentos-e-oitenta-e-quatro-kafkianas servidas frias (meses, ou anos depois), não seriam despiciendos.
O poder de um Estado democrático ainda incipiente[2], com uma copiosa produção legislativa, cuja interpretação é muitas vezes dúbia, com uma justiça em que os cidadãos não confiam, com agentes e funcionários que podem interpretar a lei com um grande grau de latitude… é sem dúvida de temer. A tentativa de dissuasão e o conselho de “estar caladinho” têm a sua justificação, por mais execrável que seja «aceitar o inferno e tornar-se parte dele ao ponto de já não o ver».
Segundo o “Eurobarómetro Standard 94”, dedicado a Portugal, no Inverno 2020-2021: «As proporções de inquiridos que expressam confiança na justiça e no sistema judicial (42 por cento) e na administração pública (41 por cento) são minoritárias no contexto português.»
O Bastonário da Ordem dos Advogados, Luis Menezes Leitão, que deverá conhecer intimamente o sistema, afirma que «à justiça em Portugal, só têm acesso os muito ricos e os indigentes».
O Estado português é, pese a demagogia da frase feita, efectivamente fraco com os fortes e forte com os fracos e isso é desolador. A sua sobrecapacidade de esmagar o cidadão crédulo na sua bondade, ou alérgico a litigiosidade e processos sem fim, de desfecho imprevisível, é extravagante.
Apesar de tudo isto, apesar deste tom sombrio emprestado pela realidade, sei que há milhares de funcionários públicos de uma probidade a toda a prova e acredito que haja órgãos do Estado que desempenhem bem os seus papéis.
“[…] tinham de arrastá-lo lateralmente, primeiro à frente, depois atrás, as rodas resistiam, empeçavam nas pedras, que era preciso desfazer a malho, e ainda assim não se queixavam […]”[3]
As competências da Provedora de Justiça são das mais nobres do nosso sistema democrático. Estou ciente de que o carácter difuso da indiferença generalizada do Estado pelo cidadão dificilmente consubstancia uma queixa gerível pela Provedoria de Justiça, mas também não há muitos outros interlocutores para ela. Mas mesmo que não seja considerada uma “queixa”, no sentido formal do termo, não poderia deixar de partilhar esta carta e o relatório abaixo, centrados nas deficiências da Administração Pública Electrónica, com uma entidade cujo lema é “Na defesa dos cidadãos”. Espero com isto contribuir humildemente para que, como tão bem V.ª Ex.ª disse, seja abandonado “o desleixo no cultivo da ideia de serviço público”.
Certo de que as minhas preocupações serão entendidas por V.ª Ex.ª, subscrevo-me respeitosamente,
Paulo Ferreira
P.S.: Algumas notas sobre o site do Provedor de Justiça na internet
O website ainda pode ser acedido através de uma ligação insegura:
A ferramenta Webcheck do Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS) e da Associação DNS.PT indica que o site tem a seguintes vulnerabilidades:
- O nome de domínio não se encontra assinado com DNSSEC;
- O domínio de internet não possui suporte a HSTS
- O domínio de internet suporta uma ou mais versões do protocolo TLS consideradas inseguras
- Pelo menos um nome de domínio do(s) servidor(es) de correio eletrónico (MX) não se encontra assinado com DNSSEC
- O domínio de correio eletrónico não implementa uma política SPF válida ou suficientemente segura
O copyright do site está com a data de “2012”, o que poderá ser uma gralha (inversão inadvertida dos dígitos), mas poderá gerar dúvidas sobre a exactidão da informação prestada:
Há bastantes broken links (talvez 181, de acordo com um teste rápido) no site da Provedoria, como estes em http://www.provedor-jus.pt/?idc=24:
O link em “Acessibilidade a Cidadãos com Necessidades Especiais à Sociedade de Informação” remete para http://www.acesso.umic.pcm.gov.pt:
O link em “Documento da Resolução do Conselho de Ministros Nº 97/99 sobre acessibilidade dos sítios da administração pública na Internet pelos cidadãos com necessidades especiais” aponta para http://www.oces.mces.pt/politica/legislacao/1999/l6.jsp:
A hiperligação acima encaminha para https://www.acessibilidade.gov.pt/w3/TR/WCAG20/, que poderia ter, logo nesta página “404” o contacto para o cidadão.
As hiperligações na página de “Links” da Provedoria mencionam URL sem https. Seria uma boa prática remeter os cidadãos para páginas seguras. Alguns desses links estão desactualizados. Por exemplo, já não existe http://www.assembleiadarepublica.pt/, agora é https://www.parlamento.pt.
Na página “Perguntas Frequentes”, em http://www.provedor-jus.pt/?idc=141, há um link para uma lista com entidades a que o cidadão poderá dirigir-se nos casos em que o Provedor de Justiça não possa intervir. Essa lista está desactualizada. Julgo que é crítico actualizar regularmente uma lista com esta importância. Nem todos os cidadãos têm a destreza de alterar ou pesquisar URL. Alguns exemplos:
O site da ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos remete para:
O site do IRN deveria ser actualizado:
A Provedoria poderia recomendar aos sites para os quais remete que implementassem acessos seguros. O Centro Nacional de Cibersegurança, no documento “Boas Práticas de Cibersegurança em Teletrabalho” declara: “Navegue sempre em websites HTTPS” (tal não é possível na Administração Pública).
Na página “Perguntas Frequentes”, em http://www.provedor-jus.pt/?idc=141, também há algumas hiperligações erradas.
“Comissão de Veneza” aponta para:
Princípios de Paris remete para:
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Excerto da cantiga “De como mi ora com el-rei aveo”, de Afonso Fernandes Cubel, disponível em Cantigas Medievais Galego-Portuguesas ↑
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«Pela insuficiência de regulamentação nacional e pela incipiência do Estado na supervisão dos pedidos e também na fiscalização da aplicação dos dinheiros concedidos, os anos de 1986, 1987 e 1988 foram anos negros relativamente à obtenção e aplicação dos dinheiros públicos com origem no Fundo Social Europeu». Documento confidencial da Polícia Judiciária citado em “Os milhões da Europa roubados com autorização do Estado”. O The Economist Intelligence Unit considera que, em 2020: «Portugal
experienced a reversal, losing the “full democracy” status [it] had regained in 2019, re-joining the ranks
of “flawed democracies”» ↑
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Excerto do “Memorial do Convento”, de José Saramago. ↑