Lei inexistente no RCBE
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Carta aberta ao Presidente da República Portuguesa sobre o estado do Estado Digital

Carta Aberta ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa sobre o estado do Estado digital


Conteúdo

Plano de detalhe – enquadra-se um pormenor para iluminar uma face do Estado

Navegar é preciso

Missões a Marte sem os pés na Terra

A Página Oficial da Presidência da República Portuguesa na Internet

A Lei n.º 89/2018, de 21 de Agosto ou Brevior est hominum vita quam cornicum

Uma ilustre casa a arder e uma casa com livros


Plano de detalhe – enquadra-se um pormenor para iluminar uma face do Estado

V. Ex.ª tem demonstrado muito interesse em acompanhar a evolução da situação económica e o financiamento europeu, designadamente o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Tem para isso procedido a múltiplas consultas públicas, com diversos sectores da sociedade.

O principal motivo pelo qual o relatório Dissecação de um processo de criação de empresa online no portal ePortugal em Abril/Maio de 2021 é endereçado a V. Exª, prende-se com a minha convicção de que demonstra, de um modo muito concreto, o quanto do défice de competitividade da economia (uma das Recomendações Específicas por País identificadas no PRR), se deve à falta de organização do país e à “fraca expressão da sociedade civil”, com a concomitante desconsideração do conhecimento e experiência dos cidadãos na concepção, prossecução e monitorização das políticas públicas.

Poder-se-ia dizer que se trata de uma extrapolação da minha parte, tomando um exemplo específico de disfuncionalidade de um serviço para aventar um problema generalizado. Em boa verdade, apenas ilustro com este serviço, em particular, por manifesta falta de disponibilidade para exemplificar com todos os obstáculos similares com que me deparo, enquanto cidadão e empresário, quando tenho de interagir com a administração pública.

Note-se que não pretendo atribuir somente à desorganização do Estado a responsabilidade pelos problemas económicos do país. A falta de organização estende-se, como é consabido, à sociedade em geral. O sector privado padece dos mesmos males; e o próprio subscritor desta mensagem, porque não vive num mundo paralelo, não se exime de responsabilidades.

Navegar é preciso

O propósito cardeal de partilhar com V. Ex.ª esta mensagem consiste em alertar para o quão díspar é a real experiência de utilização dos serviços públicos digitais, dos desígnios ambiciosos e loquazes com que são habitualmente anunciados. Este problema assume uma maior preponderância porquanto muita da modernização administrativa vindoura passará pela digitalização e a “Dimensão Transição Digital” representa, pelo menos, 15% do montante de investimentos previstos no PRR.

V. Ex.ª, no exercício do seu papel activo e conformador, será determinante para que não se incorra nos mesmos erros de conceber planos e propostas ideais que soçobram na sua materialização. Estou certo de que V. Ex.ª, fazendo também uso dos importantes poderes informais que detém, poderá incentivar a concepção de políticas públicas que incorporem necessariamente as opiniões e experiências dos cidadãos, e que tenham como foco os resultados ao longo do tempo e não o mero oferecimento de um projecto circunstancialmente perfeito.

O árduo exercício de criar uma empresa online em Portugal, que é abaixo relatado, procura também realçar o quão indispensável é auscultar quem, no meio de uma transição para um novo mundo digital, navega pelas turbulentas páginas dos serviços públicos e não apenas os peritos em física elementar da navegação à vela. Digo isto apesar de concordar inteiramente com a afirmação de Keynes de que «practical men […], are usually the slaves of some defunct economist». Mas o “problema português” em questão, não será, neste momento, tanto de avaliação de perspectivas teóricas, mas sim de ordem prática – de concretização. Dito de um modo pompeiano-petrarquiano-pessoano-velosiano: navegar é preciso, elucubrar não é preciso.

Missões a Marte sem os pés na Terra

Não espero obviamente que V. Ex.ª tenha sequer tempo para ler o extenso exemplo que abaixo descrevo. Por isso mesmo, permita-me que ilustre de um modo preciso o cerne da questão.

O PRR que foi a consulta pública e que ainda está disponível em ConsultaLex [URL acedido originalmente: https://www.consultalex.gov.pt/ConsultaPublica_Detail.aspx?Consulta_Id=183] no ficheiro “Plano de Recuperção [SIC] e Resiliência – consulta publica [SIC]”, descreve a componente “Transição Digital das Empresas (400 M€)” do seguinte modo:

«Integra a promoção da digitalização dos negócios por via da aceleração e automação de tomadas de decisão e de execução com base em inteligência artificial, do redesenho de cadeias de valor e de fornecimento, otimizando rapidez e resiliência e da utilização de espaços de dados transsectoriais, suportada em infraestruturas europeias de cloud e edge computing, inovadoras, seguras e energeticamente eficientes, às empresas [SIC] um reposicionamento dos seus negócios num ecossistema digitalmente avançado. Engloba os programas Rede Nacional de Test Beds, Comércio Digital (Coaching 4.0) e Empreendedorismo.»

Não há como discordar da pertinência de todos estes objectivos, a não ser, quiçá, de um certo pendor excessivamente vanguardista e ambicioso, uma certa húbris que não atende aos alicerces e ao contexto. Não vale a pena fazer planos para ir a Marte, quando o velhinho jipe UMM Alter II 4WD que levará os astronautas, em formação, ao hangar, ainda carece de ir à revisão. Ou, numa realidade mais próxima à questão em apreço, quando a entidade que assegura a coordenação da maior parte dos investimentos, de centenas de milhões de euros, da “transição digital”, o IAPMEI, I.P., nem sequer tem o seu site configurado para funcionar sem o velhinho “www” (um procedimento básico):

Para além disso, de acordo com o serviço de análise de segurança de sites do Centro Nacional de Cibersegurança e da associação DNS.pt, que permite aferir o nível de conformidade de um domínio de internet com as melhores práticas internacionais de cibersegurança, o site iapmei.pt [URL utilizado originalmente: https://webcheck.pt/pt/resultados/www.iapmei.pt] apresenta os seguintes erros de segurança:

  • “O nome de domínio não se encontra assinado com DNSSEC”;
  • “As comunicação [SIC] não são redirecionadas corretamente para o canal seguro (HTTPS)”;
  • “O domínio de internet suporta uma ou mais versões do protocolo TLS consideradas inseguras.”

Também a ferramenta Webhint da OpenJS Foundation [URL utilizado originalmente: https://webhint.io/scanner/f23ae11f-99a5-4f18-b7a7-886e7501272d], que verifica a acessibilidade, compatibilidade e segurança de websites, indica que o website iapmei.pt não segue muitas vezes as melhores práticas e tem vários erros comuns.

Isto não significa, de modo algum, que o IAPMEI não possa – e deva – ter um papel fulcral na coordenação do PRR. O IAPMEI tem recursos humanos excelentes com competências para o fazer. Pretendo apenas salientar o quão impermeável o IAPMEI terá de ser ao escrutínio público para poder manter este tipo de lacunas, que são antagónicas em relação à missão de coordenação que irá desempenhar. Tal realidade não é um exclusivo do IAPMEI; é uma característica comum a muitas das entidades com papéis fundamentais no PRR. A título de exemplo:

– O site da Agência de Desenvolvimento e Coesão, I. P, (ADC) [https://www.adcoesao.pt] responsável por complementarmente assegurar a coordenação técnica e de gestão do PRR, usa software obsoleto (segundo a ferramenta Sucuri [URL acedido originalmente: https://sitecheck.sucuri.net/results/https/www.adcoesao.pt]- em 16/05/2021; o que terá um elevado risco de segurança) e tem uma avaliação de “B” no teste SSL Labs da Qualys [URL acedido originalmente: https://www.ssllabs.com/ssltest/analyze.html?d=www.adcoesao.pt], tal como o iapmei.pt (o site presidencia.pt tem uma avaliação “A”). Para além disso, inserir adcoesao.pt no browser Firefox resulta em:

– O site do Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais do Ministério das Finanças (GPEARI), que também tem a mesma responsabilidade pelo PRR que a ADC, também não redirecciona o utilizador para a versão https:

O problema basilar, tal como repetirei abaixo, não são tanto as pessoas, mas o modo como as instituições e os planos estão construídos para poderem seguir em frente independentemente dos resultados. Em linguagem mais popular, poder-se-ia dizer que a administração pública aparenta estar parcialmente construída numa lógica de “às palavras dos cidadãos chamemos loucas e façamos orelhas moucas”.

A Página Oficial da Presidência da República Portuguesa na Internet

Utilizando a mesma ferramenta do CNCS e da associação DNS.pt [URL utilizado originalmente: https://webcheck.pt/pt/resultados/presidencia.pt/] para analisar o site da presidência, detectam-se as seguintes insuficiências, em termos de conformidade com os mais recentes padrões para a comunicação segura entre sistemas:

  • “As comunicação [SIC] não são redirecionadas corretamente para o canal seguro (HTTPS)”;
  • “O domínio de internet não possui suporte a HSTS”;
  • “O domínio de correio eletrónico implementa uma política SPF que não foi considerada suficientemente segura”;
  • “O domínio de correio eletrónico não possui um registo DKIM configurado”;
  • “O domínio de correio eletrónico não tem associado um registo DMARC”;
  • “O(s) servidor(es) de correio eletrónico associado(s) ao domínio não suporta(m) ligações STARTTLS”.

O URL http://presidencia.pt redirecciona (com um código de redireccionamento temporário 307) para https://www.presidencia.pt/, mas o URL https://presidencia.pt não redirecciona para https://www.presidencia.pt/ (em 28/05/2021) e a tentativa de acesso a presidencia.pt (muitos internautas já não colocam “www” antes do domínio) resulta em “ERR_CONNECTION_TIMED_OUT”:

A título de contra-exemplo, refira-se que é indiferente escrever num browser https://bundespraesident.de, http://www.bundespraesident.de, ou http://bundespraesident.de. Todos este URL são redireccionados (com um código de redireccionamento 302) para https://www.bundespraesident.de/.

A Lei n.º 89/2018, de 21 de Agosto ou Brevior est hominum vita quam cornicum

Não julgue V. Ex.ª, pelo teor e tom desta mensagem, que considero Portugal um país condenado a processos de falhanço estatal para todo o sempre, ou que desisti de acreditar na possibilidade de o país melhorar a um ritmo mais lesto. Julgo que é possível alcançar tal desígnio incorporando – activamente – a participação dos cidadãos nas políticas públicas. É necessário que a Administração Pública tome a iniciativa de saber, junto dos cidadãos, se os seus serviços digitais estão a funcionar bem, se a informação prestada é suficientemente esclarecedora. Para que não aconteça como nas páginas do Registo Central do Beneficiário Efetivo (tomando um dos exemplos que dou no relatório), que refere, há meses (anos?), uma lei inexistente:

Uma imagem com texto Descrição gerada automaticamente

Uma ilustre casa a arder e uma casa com livros

Numa nota pessoalíssima, permita que partilhe com V. Ex.ª um detalhe que me deixou verdadeiramente orgulhoso de Portugal.

No passado dia 20 de Janeiro tomou posse o 46.º presidente do país mais poderoso do mundo, Joe Biden. Quatro dias depois os jornais dos E.U.A. ainda se debruçavam sobre as consequências da invasão do Capitólio e a desconfiança de milhões de americanos quanto ao resultado do escrutínio – 84 depois do dia das eleições. O responsável último por estas tragédias, o 45.º presidente, é suspeito de nunca ter lido um livro inteiro enquanto adulto [Link acedido originalmente: https://www.newyorker.com/magazine/2016/07/25/donald-trumps-ghostwriter-tells-all]. O próprio disse que não precisa de ler muito porque consegue tomar as decisões certas «with very little knowledge other than the knowledge I [already] had […] [Link acedido originalmente: https://www.washingtonpost.com/politics/donald-trump-doesnt-read-much-being-president-probably-wouldnt-change-that/2016/07/17/d2ddf2bc-4932-11e6-90a8-fb84201e0645_story.html].»

Enquanto isso, numa galáxia política muito longínqua, uma televisão acompanhava um Presidente-candidato na noite em que seria reeleito [Link acedido orignalmente: https://www.rtp.pt/noticias/politica/como-marcelo-viveu-em-casa-a-noite-das-presidenciais_v1292435], nas eleições de um pequeno país povoado por irredutíveis portugueses. A reportagem mostrava esse cidadão a escolher um vinho do ano da Implantação da República – numa casa normalíssima, enriquecida com livros – para celebrar a sua reeleição.

Esta reportagem tornou-se, para mim, a representação simbólica do contraste entre a balbúrdia escabrosa do processo eleitoral numa grande potência, e a serenidade e elevação com que decorreu a eleição de um Presidente-leitor neste pequeno país. Emocionou-me essa normalidade democrática, essa tranquila transição de poder rodeada de livros.

Um país que consegue fazer isto não é um caso perdido. Um Presidente que inquire e lê para tomar decisões mais informadas, faz tudo ao seu alcance para que um país não se perca.

É por isso que tenho a firme convicção de que este meu pequeno exercício de cidadania, esta minha crítica a este atávico e atado estado das coisas, não cairá em saco roto.

Certo de que as minhas preocupações serão entendidas por V.ª Ex.ª, subscrevo-me respeitosamente,

Paulo Ferreira

(3 de Junho de 2021)

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